Fumar crack –
mistura de pasta de cocaína, bicarbonato de sódio e água – é mais danoso aos
neurônios do que cheirar cocaína pura. A conclusão é de um trabalho feito
por um grupo de pesquisadores paulistas, liderados por Tania Marcourakis, da
Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP), que
estuda desde 2007 a ação dessas drogas nas células cerebrais. Os efeitos
negativos do crack se potencializam porque, ao consumi-lo, o
indivíduo inala não apenas cocaína, um alcaloide, mas também um éster conhecido
como metilecgonidina ou simplesmente Aeme. Há poucas informações a respeito dos
efeitos do éster, que é produzido quando a cocaína é queimada em alta
temperatura e pode causar, como sugere o estudo, a morte de neurônios.
A pesquisa foi realizada em
cultura de células do hipocampo de ratos expostas a diferentes concentrações do
éster e do alcaloide, isolados e em combinação. O hipocampo está envolvido no
processo de aprendizagem e é rico em receptores colinérgicos muscarínicos que
se ligam ao neurotransmissor acetilcolina, importante para a fixação da
memória. “Constatamos que, quando os neurônios permanecem em contato com a
cocaína e o Aeme por um período de 48 horas, ocorre
um efeito neurotóxico muito maior do que quando expostos a cada uma dessas
substâncias isoladamente”, afirma Tania. A neurotoxicidade se dá por mecanismos
diferentes. A cocaína induz a morte neuronal por duas vias: por necrose – a
célula sofre uma espécie de inflamação, incha e arrebenta, extravasando seu
conteúdo – e por apoptose, uma morte celular programada, em que o núcleo da
célula se fragmenta, formando pequenos corpos que são fagocitados pelas células
de defesa do organismo. O Aeme provoca a morte celular apenas por apoptose. Os
primeiros resultados do estudo, foram publicados em abril na revista
científica Toxicological Sciences.
A devastação nas células
cerebrais provocada pelo uso do crack está relacionada à sua quantidade e
frequência de consumo, já que o éster permanece no organismo por um tempo
prolongado. “O efeito cumulativo do Aeme ainda não foi avaliado. Constatamos,
no entanto, que a exposição de uma cultura de neurônios ao éster por 24 a 48
horas mata essas células. Se essa neurotoxicidade pode levar a uma
neurodegeneração é uma pergunta que não podemos responder no momento”, afirma
Tania.
Os efeitos do crack atingem
rapidamente o cérebro e causam uma sensação de prazer de curta duração. Isso
leva os usuários a aumentar a frequência do consumo da droga e desenvolver
rapidamente dependência. A produção do Aeme durante o ato de fumar a droga
parece reforçar a dependência do usuário. A cocaína inibe a recaptura de
dopamina, neurotransmissor responsável pela sensação de prazer, e aumenta sua
concentração na fenda sináptica, pontos de comunicação entre dois neurônios.
Esse mecanismo é o responsável por seus efeitos estimulantes. “Nossa teoria é
que o Aeme se liga a receptores muscarínicos do tipo M5 na área tegumental
ventral [grupo de neurônios localizados no mesencéfalo, parte do cérebro ligada
à visão, audição, controle motor, sono e vigília e controle de temperatura]”,
diz Tania. “Isso estimularia a liberação de dopamina no núcleo accunbens [estrutura
cerebral ligada à sensação de prazer], potencializando o processo de
dependência da cocaína.” Essa teoria será testada na Universidade Vanderbilt,
nos Estados Unidos, pelo aluno de doutorado Raphael Caio Tamborelli Garcia. Os
efeitos da cocaína no núcleo já eram conhecidos. “No entanto, a pesquisa mostra
que, no caso do crack, há algo mais”, diz Cleopatra da Silva
Planeta, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade Estadual
Paulista (Unesp), de Araraquara.
Segundo maior mercado
O uso da cocaína, em sua forma intranasal ou na mistura de crack para ser fumada, assumiu proporções dramáticas no Brasil: o país já é o segundo maior consumidor global da droga, com 2,6 milhões de usuários, um terço deles dependentes do crack. Os números foram coletados pelo II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad), realizado pelo Instituto Nacional de Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas (Inpad), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Temos um mercado consumidor maior que o de toda a Europa e América Latina. Perdemos apenas para os Estados Unidos”, diz Ronaldo Laranjeira, coordenador do Inpad.
A posição de destaque do Brasil
se sustenta em função do baixo preço da droga. Aqui ela custa um décimo do
valor de mercado praticado nos Estados Unidos e um vigésimo do preço cobrado na
Europa, segundo o pesquisador da Unifesp. A proximidade dos grandes produtores
de cocaína – Colômbia, Peru e Bolívia – e a alta capilaridade do sistema de distribuição
da droga no Brasil são outros fatores que favorecem seu alto consumo. A rede de
distribuição, formada por pequenos traficantes, é altamente eficiente: o maior
consumo está no Sudeste, com 45% dos usuários, mas a cocaína/crack está
presente no Nordeste (27%), Norte e Centro-Oeste (10%) e no Sul (7%). “Isso
torna o controle muito mais difícil”, diz ele.
A cocaína consumida por via nasal
é de uso mais comum. Foi experimentada por 4% dos adultos, segundo a pesquisa.
Dois milhões de brasileiros já utilizaram o crack pelo menos uma vez na vida e
um em cada 100 adultos fumou essa substância no último ano, expondo-se aos
riscos duplos da cocaína e do éster Aeme, ainda de acordo com levantamento da
Unifesp. Quase a metade dos usuários experimentou a cocaína pela primeira vez
antes dos 18 anos.
O Ministério da Saúde e o governo
paulista têm investido no tratamento de indivíduos viciados. “O estado de São
Paulo se comprometeu a ampliar para 3.700 o número de leitos de internação em
clínicas especializadas”, afirma Laranjeira. Os números, no entanto, não deixam
dúvidas de que o Brasil deixou de ser um país de passagem para ser um
consumidor da droga, o que exige uma atuação forte junto às áreas produtoras.
“É preciso adotar uma política de negociação com esses países, já que se trata
de uma atividade de produção que envolve uma parcela representativa do PIB.
Esse entendimento envolve relações bilaterais e multilaterais, considerando que
não temos recursos para fechar fronteiras.”
Artigo científico
GARCIA, R. C. et al. The neurotoxicity of anhydroecgonine methyl ester, a crack cocaine pyrolysis product. Toxicological Sciences. v. 128, p. 223-34. jul 2012.
GARCIA, R. C. et al. The neurotoxicity of anhydroecgonine methyl ester, a crack cocaine pyrolysis product. Toxicological Sciences. v. 128, p. 223-34. jul 2012.
Por: Claudia Izique
