segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Estudo brasileiro pode ter desvendado a hipercoagulabilidade na covid-19

Uma pesquisa brasileira pode ter elucidado os mecanismos por trás do estado de hipercoagulabilidade frequentemente observado em pacientes com covid-19, especialmente em quadros graves.


O artigo, publicado em 17 de julho no periódico Blood, avaliou amostras de 35 pacientes com infecção confirmada pelo SARS-CoV-2 (acrônimo do inglês, Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2), com diferentes gravidades, e comparou com amostras de controles que testaram negativo para o vírus.

Dois achados principais se destacam: uma maior ativação plaquetária nos pacientes com covid-19 grave e um aumento na formação de agregados entre plaquetas e monócitos. 

De forma relevante, esses achados se correlacionaram positivamente com desfechos clínicos negativos, como a necessidade de cuidados intensivos.

"O principal achado neste estudo é que nós identificamos um dos mecanismos pelos quais os pacientes com covid-19 apresentam maior risco de trombose", explicou o Dr. Eugênio Hottz, professor-adjunto do Departamento de Bioquímica da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz (IOC) e primeiro autor do estudo.

"A identificação desses mecanismos é essencial para que estudos futuros possam investigar se medicamentos que interferem nas plaquetas podem gerar benefícios para os pacientes", disse ele ao Medscape por e-mail.

Ativação plaquetária

Os autores avaliaram a ativação plaquetária por meio da expressão de CD62P (P-selectina) e CD63, marcadores de grânulos plaquetários, na citometria de fluxo em amostras de sangue. 

Os pacientes com covid-19 grave apresentaram um aumento da expressão dessas moléculas, o que não aconteceu nos indivíduos assintomáticos, com sintomas leves ou nos controles, significando degranulação plaquetária.

Para confirmar a ativação plaquetária nesses pacientes, os autores também avaliaram os níveis plasmáticos de tromboxane B2, que é um metabólito da síntese plaquetária de tromboxane A2. 

De forma semelhante, a síntese de tromboxane A2 estava aumentada apenas nas plaquetas dos participantes com covid-19 grave.

Além disso, os pesquisadores analisaram amostras da secreção de vias aéreas dos pacientes, e encontraram fatores derivados de plaquetas nos aspirados traqueais, sugerindo que a ativação plaquetária e os produtos secretados pelas plaquetas ganham acesso às vias aéreas na infecção grave pelo novo coronavírus.

A hipótese dos autores é que o processo inflamatório grave e a síndrome de liberação de citocinas possam favorecer a ativação plaquetária. 

Nesse estudo, maiores níveis de proteína C-reativa e fibrinogênio foram positivamente associados a uma maior ativação de plaquetas, mas essa correlação não se manteve para os níveis de interleucina 6 (IL-6).

Para confirmar essa teoria, os pesquisadores realizaram um experimento in vitro: eles estimularam plaquetas de voluntários saudáveis com o plasma de pacientes com covid-19 grave. 

As plaquetas incubadas exibiram aumento da translocação superficial de P selectina e CD63, indicando que os mediadores inflamatórios circulantes nos pacientes são ao menos parcialmente responsáveis pelo aumento da ativação plaquetária nos quadros graves.

Agregados de plaquetas e monócitos

O outro achado bastante relevante foi a formação de agregados entre plaquetas e monócitos. 

A P selectina é a principal proteína presente nas plaquetas ativadas, que intermedeia a adesão e sinalização com os monócitos. 

Assim, sua expressão aumentada poderia significar uma maior interação entre essas células.

Novamente, apenas os pacientes graves e com necessidade de cuidados intensivos apresentaram uma diferença estatisticamente significativa em relação aos controles.

Os agregados entre plaquetas e monócitos foram observados através da citometria de fluxo e da microscopia por fluorescência confocal.

Para entender o papel dos agregados de plaquetas e monócitos no estado de hipercoagulabilidade do paciente, os autores também avaliaram se essas células expressavam o fator tissular, que é o principal gatilho para a via extrínseca da coagulação.

Foi observado aumento da expressão do fator tissular nos monócitos, mas não nas plaquetas, em pacientes graves. 

Os pesquisadores também compararam a expressão de fator tissular em monócitos isolados com a dos agregados, encontrando uma expressão significativamente maior no segundo grupo.

Outra observação importante é que os níveis séricos de D-dímero tiveram correlação positiva com a ativação plaquetária e na expressão de fator tissular pelos monócitos.

Implicações clínicas

A hipercoagulabilidade na covid-19 parece ser uma característica patológica central e uma complicação clínica. 

A compreensão dos mecanismos fisiopatológicos por trás de sua origem tem grande relevância.

"Nós mostramos que o aumento da ativação plaquetária e da expressão de fator tissular em monócitos, de forma dependente da agregação com plaquetas, prediz desfechos negativos, como a necessidade de ventilação mecânica e a mortalidade intra-hospitalar", escreveram os autores.

Eles sugerem que seria relevante estudar a ativação plaquetária e as interações entre plaquetas e monócitos em pacientes que utilizam antiagregantes plaquetários, bem como em pacientes que apresentam ou não complicações tromboembólicas.

"De forma geral os pacientes com covid-19 admitidos em unidades de terapia intensiva têm recebido tratamento profilático com heparina, o que pode ter efeitos colaterais indesejados, como sangramento", disse o Dr. Eugênio.

"Uma vez que o nosso estudo identifica uma associação importante da ativação das plaquetas com os desfechos desfavoráveis dos pacientes, ele gera a possibilidade de que o acompanhamento dos níveis de ativação plaquetária nos pacientes internados possa servir como uma espécie de sinalizador de que um determinado paciente tem maiores chances de apresentar um quadro mais grave, o que pode contribuir para a tomada de decisão entre os profissionais que tratam dos pacientes", explicou ele.

A Dra. Patrícia Bozza, que também é pesquisadora do IOC e autora do estudo, ressaltou a importância da equipe multidisciplinar e da colaboração científica para oferecer respostas rápidas neste momento de pandemia.

"Nosso grupo de pesquisa uniu esforços de uma equipe multidisciplinar com a colaboração entre grupos de pesquisa básica e de pesquisa clínica de diferentes instituições e hospitais, o que foi fundamental para o caráter translacional da pesquisa, contribuindo para o melhor entendimento sobre os mecanismos associados a coagulopatia na covid-19", disse ela ao Medscape.

A equipe ainda pretende dar continuidade à pesquisa, avaliando outros aspectos. "Agora nós estamos investigando como essa ativação da coagulação contribui para o aumento do quadro de inflamação na covid-19, principalmente em relação à produção exagerada de hormônios inflamatórios, o que é chamado na literatura biomédica de 'tempestade de citocinas'", concluiu o Dr. Eugênio.

Os autores do estudo informaram não ter conflitos de interesses.

Fonte: Medscape

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