Nicotina, droga psicotrópica de uso comum através do cigarro, tem sua farmacologia e interação com outros fármacos pouco conhecida e menos ainda divulgada. Segundo Justo, o potencial do uso do cigarro em interferir com a ação de fármacos é significante.
A nicotina, isolada, em 1828, da folha do tabaco por Posselt e Reiman, faz parte da fumaça do cigarro, como um dos seus 4.000 componentes, e é o mais estudado entre todos. As ações farmacológicas da nicotina são em geral imprevisíveis, pois se fazem, ao mesmo tempo, sobre vários sistemas efetores, com ações estimulantes e depressoras sequenciais e dose dependentes.
Estas diferentes ações farmacológicas interagem no mecanismo de atuação de vários fármacos, fato este pouco discutido na literatura, apesar do largo uso do cigarro em pacientes sob tratamento, com diferentes medicamentos, para males em clínica médica, em geral e, em cardiologia, em particular. Cabe ao médico estar atento para a eventualidade da modificação de ação dos medicamentos com a suspensão do uso do cigarro.
As ações da nicotina se fazem fundamentalmente através do sistema nervoso autônomo. A nicotina se liga a receptores colinérgicos nos gânglios autônomos, na medula adrenal, na junção neuromuscular e no sistema nervoso central. Ocorre uma resposta bifásica, em geral com estímulo colinérgico inicial, seguido de antagonismo dependendo das doses empregadas.
Pequenas doses de nicotina agem nos gânglios do sistema nervoso autônomo, inicialmente como estímulo a neurotransmissão e, subsequentemente, como depressor. O uso de altas doses de nicotina tem rápido efeito estimulante seguido de efeito depressor duradouro.
Sobre o sistema nervoso central, a nicotina age através de várias vias neuroquímicas e diferentes receptores. Libera acetilcolina, noradrenalina, vasopressina e beta endorfinas. Inibe a liberação de substância P e hormônio estimulante alfa melanocítico. Os efeitos sobre a serotonina dependem da via de administração e do local do cérebro estudado.
A nicotina, à semelhança de outras drogas que causam dependência, ativa o sistema dopaminérgico mesolímbico. Essas ações aumentam o estado de atenção e sensação de bem estar, aumentam a capacidade de memória e provocam dependência. Observam-se ainda tremores das extremidades e, em doses maiores, até convulsão. O efeito emético se faz sobre a medula oblonga. O fumante ajusta seu comportamento de fumo, com o objetivo de regular a concentração plasmática de nicotina, de acordo com suas necessidades.
Benowitz observou que o uso de cigarros com baixos teores aumenta o número de cigarros fumados. Sobre o sistema cardiovascular, a ação se faz fundamentalmente através do estímulo adrenérgico. Receptores colinérgicos nicotínicos ativam gânglios autonômicos com subsequente liberação de noradrenalina pós ganglionar e adrenalina da medula suprarrenal.
Observam-se, como efeito clínico, taquicardia e hipertensão arterial. Aronow e col constataram aumento da frequência cardíaca em fumantes que fumavam cigarro com nicotina mas não naqueles que usavam cigarro sem nicotina. A nicotina provoca ainda vasoconstricção periférica com redução da temperatura cutânea e aumento da resistência periférica.
Sobre o aparelho digestivo a ação estimulante se faz através do parassimpático aumentando a motilidade intestinal. A nicotina age sobre o sistema enzimático hepático e intestinal estimulando sua ação e aumentando a velocidade de metabolização de fármacos exógenos e produtos endógenos. Estimula ainda a liberação de prolactina, hormônio de crescimento, vasopressina, betaendorfinas, cortisol, e hormônio adreno corticotrópico (ACTH). É metabolizada primariamente pelo fígado e, parcialmente, eliminada in natura pelo rim. O principal metabólito é a cotinina excretada pelo rim.
Devido às diferentes ações farmacológicas, a nicotina circulante administrada através do hábito de fumar ou dos adesivos e gomas de mascar contendo nicotina, interage com uma série de medicamentos, modificando sua ação ou exigindo maiores doses para sua ação plena.
Por outro o fato de abandonar o hábito de fumar pode exigir adequação das doses dos fármacos.
Benzodiazepínicos - Grandes fumantes experimentam menor ação tranquilizadora com o uso de benzodiazepínicos, quando comparados com não fumantes. Estudos indicaram maior metabolização hepática dos diazepínicos em fumantes, devido o estímulo das enzimas microssomais induzido pela nicotina. Ochs e col, por outro lado, admitem que esta depressão na ação do tranquilizante não se deve a maior clearance dos diazepínicos, mas sim a ação estimulante da nicotina sobre o sistema nervoso central, contrabalançando a ação farmacológica dos diazepínicos. São, portanto, conflitantes os dados em relação ao aumento do metabolismo dos diazepínicos em fumantes, não sendo esta, provavelmente, a causa exclusiva da menor resposta do tranquilizante em fumantes.
Fatos semelhantes foram descritos para clorpromazina, imipramina, haloperidol, e outras drogas de uso em psiquiatria.
Analgésicos - Fumantes apresentam menor tolerância à dor, exigindo maiores doses de codeína meperidina, morfina e propoxifeno para aliviá-la.
Insulina - Em relação aos diabéticos insulino-dependentes, admite-se que a vasoconstricção cutânea induzida pela nicotina, diminua e/ou retarde a absorção da insulina, exigindo maiores doses em fumantes e diminuição das doses com a suspensão do cigarro. A nicotina, ainda por sua ação sobre a secreção de cortisol e hormônio do crescimento, ambos hiperglicemiantes, poderia se contrapor a ação da insulina. Estes fatos, se bem que farmacologicamente corretos, são ainda controversos em relação a sua importância clínica.
Inibidores dos receptores H2 - O hábito de fumar reverte a inibição noturna da secreção gástrica induzida pelos inibidores dos receptores H2, cimitidina e ranitidina. Está pois contraindicado o uso de cigarro à noite neste grupo de pacientes.
Fármacos aplicados em doenças cardiovasculares
Em fumantes, o efeito de medicamentos vasodilatadores (bloqueadores dos canais de cálcio e nitratos) é deprimido devido aos maiores níveis de aminas circulantes e aumento da resistência periférica. A interação de nicotina com betabloqueadores foi estudada por Frankl e Soloff, que descreveram que a inalação da fumaça de cigarro em pacientes em uso de propranolol aumentava a pressão arterial significativamente mais, que naqueles sem beta bloqueador.
O efeito se deve a ação das catecolaminas sobre os alfa receptores sem oposição dos receptores beta que se encontram bloqueados. Há, portanto, a possibilidade de que a nicotina interfira com a ação hipotensora dos betabloqueadores em alguns pacientes. Não há interferência da nicotina com a farmacocinética dos betabloqueadores.
Em relação ao uso de diuréticos, é demonstrado que o hábito de fumar diminui a diurese por ação mediada pela nicotina, que aumenta os níveis de hormônio antidiurético. Estudos em humanos sobre a ação da furosemida, em fumantes eventuais, constataram menor diurese. Este achado não se repete em fumantes crônicos, e se deve provavelmente à tolerância, neste grupo, da ação da nicotina sobre o hormônio antidiurético.
Estudos sobre a interferência da nicotina sobre o metabolismo hepático da teofilina, indicaram diminuição da sua vida média em fumantes concluindo que fumantes necessitam de doses maiores de teofilina em relação a não fumantes. Sylvén e col descreveram maior atividade álgica e de bloqueio AV da adenosina quando associados a nicotina. Vários mecanismos farmacológicos podem estar envolvidos, a ação sobre o nó AV provavelmente se faz pela ação vagotônica da nicotina.
Em relação aos anticoagulantes, não se constatou até agora, modificação do tempo de protrombina com ou sem o uso de cigarro apesar da descrita interação farmacocinética com o warfarin. Davis e col observaram, relacionado aos medicamentos antiplaquetários, que dipiridamol isoladamente, ou associado a aspirina, foi ineficaz em prevenir a ativação plaquetária e as alterações endoteliais, induzidas pelo fumo. É provável que isto se deva ao aumento das catecolaminas circulantes após o ato de fumar. Esta ação está relacionada com a nicotina inalada. Os níveis de beta-tromboglobulina e fator plaquetário estavam diretamente relacionados com os níveis de nicotina circulante.
Williams e Tempelhof chamaram atenção para o risco do uso de adesivos de nicotina em período pré-anestésico, pelo risco da somação da atividade simpática induzida pela nicotina associado ao estresse cirúrgico, provocar espasmo coronariano.
Smits e col discutiram a interação sobre o aparelho cardiovascular, entre a cafeína e a nicotina, associação habitual na vida social atual. Ambas as drogas são estimulantes simpaticoadrenais. A ação da cafeína se faz inibindo a fosfodiesterase adicionando aumento do AMPcíclico intracelular. Os autores concluem que, na realidade, não ocorre interação, mas sim, somação em relação a taquicardia e hipertensão do indivíduo em repouso. Quando sob estresse, a associação não leva a resposta mais expressiva que o uso das drogas de forma isolada.
Cabe discutir, de modo genérico, a eventual interferência do hábito de fumar e, por conseguinte, da nicotina no tratamento de várias entidades em cardiologia. Baseado na ação farmacológica da nicotina pode-se conjecturar sobre a interferência do hábito de fumar no tratamento da hipertensão arterial, insuficiência coronária, arritmias e dislipidemia.
A ação da nicotina sobre o sistema nervoso simpático, conforme descrito anteriormente, promove aumento da pressão arterial, da frequência cardíaca e da resistência arteriolar sistêmica. Considera-se, entretanto, que ocorra tolerância em relação a estas ações em fumantes crônicos.
Os estudos da ação hipotensora de diferentes medicamentos não analisam subgrupos de fumantes contra não fumantes, cabendo, portanto, iniciativa de protocolos com este objetivo para que se possa confirmar ou não, acertivas que poderiam ser corretas, apenas sob aspecto farmacológico, mas sem importância clínica. A mesma observação vale para o uso de vasodilatadores e o tratamento da insuficiência coronária, em particular, e insuficiência vascular arterial, de modo geral.
A nicotina, através de sua ação adrenérgica predispõe a arritmias do tipo extra-sístoles, comprometendo a ação antiarrítmica dos fármacos usados.
Demonstrou-se em macacos, que a nicotina aumenta os níveis de colesterol e LDL colesterol. Portanto, a ação hipercolesterolemiante da nicotina, além da sua suposta interferência com o metabolismo hepático dos medicamentos hipolipemiantes, deve interferir com o resultado do tratamento em pacientes fumantes e deslipidêmicos.
Se de um lado a nicotina interfere com o metabolismo e ação farmacológica de medicamentos, do outro lado, várias situações interferem com o metabolismo da nicotina, aumentando ou diminuindo sua vida média e justificando, deste modo, o uso maior do cigarro em diferentes situações. Idade, sexo, aspectos genéticos, função renal e hepática, via de administração e gravidez estão relacionados com o metabolismo da nicotina e alguns fármacos foram testados em relação ao mesmo. Fenobarbital aumenta a metabolização hepática da nicotina em cotinina. Por outro lado, a ação competitiva na metabolização hepática entre a nicotina e os antagonistas dos receptores H2, diminuem o clearance de nicotina e cotinina, mantendo níveis sanguíneos durante tempo mais prolongado. O etanol, de uso frequente em associação com a nicotina, induz à diminuição de seus níveis plasmáticos, explicando o uso maior de cigarro associado ao álcool.
Acreditamos que a interação de medicamentos com a nicotina deverá assumir papel cada vez mais importante com a aquisição e divulgação dos conhecimentos das ações farmacológicas da nicotina. Estudos experimentais em animais e humanos, tanto em fumantes crônicos quanto naqueles que abandonaram o vício, deverão nos indicar as modificações nas dosagens terapêuticas em diferentes situações patológicas.
Fonte: Nicotina. Ações e Interações - Roberto A. Franken, Gustavo Nitrini, Marcelo Franken, Alfredo J. Fonseca, Julia C. T. Leite. São Paulo, SP
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