quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Drogas biológicas já dão bons resultados contra o câncer e outras doenças


 Parece uma vinícola. Tonéis mantidos sob temperatura e luminosidade rigorosamente controladas guardam pelo tempo necessário uma preciosa mistura, que passa pelo processo de fermentação e, mais tarde, purificação. O resultado é um líquido prontamente engarrafado e rotulado. O destino, porém, não são as prateleiras de lojas e supermercados, mas drogarias e hospitais. Os recipientes que saem dessas fábricas contêm as chamadas drogas biológicas, classe de medicamentos que promete revolucionar o tratamento de doenças como o câncer e males inflamatórios e neurológicos.

Esses remédios são, na verdade, proteínas humanas que interferem na evolução das enfermidades. Recebem a denominação “biológicos” porque são produzidos a partir de organismos vivos — sozinhos, os cientistas não são capazes de fabricá-los. Depois de isolar uma dessas proteínas, eles a inserem em células, formando matrizes. A partir daí, colocam algumas dessas células modificadas em compostos de glicose e aminoácidos para que elas se multipliquem e, assim, produzam em larga escala a substância desejada.

Apesar de serem constantemente chamados de remédios do futuro, devido aos avanços que ainda podem promover, esses medicamentos já estão no mercado. Na última década, a indústria dos biofármacos tem apresentado avanços significativos. A cada dia, os cientistas descobrem proteínas específicas que ajudam a tratar diversos males. E, melhor, depois de identificá-las, passam a fabricá-las.

Uma das áreas beneficiadas é a do tratamento das artrites inflamatórias, doenças do tecido conjuntivo que provocam a inflamação das articulações — a artrite reumatoide é a mais comum. Segundo o médico Antonio Carlos Ximenes, presidente da Liga de Associações de Reumatologia das Américas, algumas drogas recentemente criadas são proteínas que agem especificamente sobre substâncias chamadas citocinas, liberadas pelas células inflamadas. “Elas ainda não representam a cura, mas bloqueiam a inflamação, amenizando sintomas”, explica Ximenes. Segundo ele, esses remédios beneficiam entre 20% e 30% dos pacientes que não respondem bem aos tratamentos convencionais.

ANTICORPOS

Grandes vitórias são observadas também na luta contra o câncer. “A oncologia é, sem dúvida, uma das áreas mais beneficiadas pelos medicamentos biológicos”, avalia Fermin Ruiz de Erenchun, gerente-geral do laboratório Roche no Peru. Nos últimos 10 anos, cerca de 50 biofármacos para combater o câncer foram desenvolvidos. As estrelas desses novos tratamentos são os chamados anticorpos monoclonais, conhecidos como “balas mágicas”. O apelido se deve à capacidade de essas drogas atacarem diretamente as células cancerosas, preservando as saudáveis, uma vez que, ao entrarem na corrente sanguínea, são capturadas pelo tumor. Por isso, os cientistas estão se especializando em descobrir substâncias que agem sobre cada tipo de câncer para realizar um ataque mais preciso a cada doença.

É o caso do trastuzumab, anticorpo monoclonal que bloqueia a ação da proteína HER2, responsável pelo crescimento das células de câncer de mama em cerca de 20% das pacientes. Nas mulheres cujos tumores apresentam a proteína, o uso do medicamento, aliado ao tratamento tradicional, levou a uma redução de 34% dos casos de morte, segundo estudo publicado na revista especializada The Lancet. Outro exemplo é a droga Cima Vax-EGE, desenvolvida em Cuba e atualmente em fase de testes em diferentes países, incluindo o Brasil. O medicamento consegue prolongar a expectativa de vida de pacientes com câncer de pulmão em estágio avançado.

Para a chefe do Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias da Universidade de São Paulo (USP), Lygia da Veiga Pereira, esses medicamentos trazem uma perspectiva “fascinante”. “A tendência é que tenhamos produtos cada vez mais inteligentes e capazes de realizar ataques diretamente nos tumores”, prevê. Em outras palavras, o desenvolvimento dessas drogas pode significar, no futuro, tratamentos menos agressivos, sem os tradicionais efeitos colaterais, como a queda de cabelo e o mal-estar.

PERSONALIZADOS

Uma das características de muitos desses remédios é que eles não funcionam para todos os pacientes com diagnóstico semelhante. O trastuzumab, por exemplo, só é eficaz nas mulheres cujas células expressam a proteína HER2. O mesmo ocorre nos tratamentos voltados às doenças inflamatórias. Para ser tratada com determinado medicamento, a pessoa precisa liberar a citocina específica sobre a qual aquela proteína atua.

O que pode parecer uma falha é encarado pelos especialistas como a chance de desenvolver tratamentos personalizados e mais eficientes. Grosso modo, é como se a medicina saísse da era de remédios receitados para um grande número de pacientes, mas com uma porcentagem apenas razoável de cura, para produtos complexos, desenhados para cada caso e, portanto, mais eficientes. “Drogas para todos os cânceres são uma coisa do passado. Nosso foco é a medicina voltada para cada paciente”, decreta Fermin Erenchun.

Dessa forma, uma das preocupações da indústria farmacêutica hoje é encontrar marcadores genéticos presentes em alguns grupos de pessoas que indicam o caminho pelo qual os cientistas podem seguir para desenvolver uma nova droga. Podem ser alterações em algum gene ou a produção de uma substância específica que pode ser combatida com certa proteína. “Hoje, buscamos primeiro o marcador para, a partir daí, desenvolvermos o medicamento”, esclarece o executivo.

Ele afirma que a personalização dos tratamentos deve combater ainda outro problema grave: as reações adversas a medicamentos. Um estudo publicado pelo Journal of the American Medical Association, em 2008, estimou que, a cada ano no mundo, ocorrem 100 mil mortes devido a efeitos nocivos de medicamentos mal administrados.

SEM GENÉRICOS

A fabricação das drogas biológicas é muito mais difícil que a dos medicamentos de síntese química. Isso porque boa parte do trabalho é feito pela cultura de células, um processo difícil de ser controlado. Em alguns casos, um medicamento pode ter seus efeitos alterados se produzido em um recipiente de tamanho diferente daquele onde é normalmente fabricado. Por isso, não existem genéricos dos medicamentos biológicos, por ser praticamente impossível para um laboratório fazer uma cópia fiel do remédio criado por outro. Nesse campo da medicina, só se fala em remédios similares.

Por Humberto Rezende