terça-feira, 7 de setembro de 2021

Fluoxetina para prevenção ou tratamento do AVC: a palavra final?

O antidepressivo fluoxetina não previne nem reduz os sintomas de depressão após um acidente vascular cerebral (AVC), confirmam os novos achados de um estudo randomizado e controlado por placebo.

Os resultados sugerem que o uso de rotina do inibidor seletivo da recaptação da serotonina (ISRS) "não pode ser recomendado para a prevenção ou o tratamento da depressão pós-AVC", disse ao Medscape o primeiro autor do estudo, Dr. Osvaldo P. Almeida, Ph.D., professor de psiquiatria geriátrica da University of Western Australia, na Australia.

“Sintomas depressivos são comuns após o AVC, mas, para uma grande parte dos pacientes, esses sintomas são passageiros e resolvem em poucas semanas. Medidas gerais de suporte e reabilitação precoce podem anular qualquer possível benefício associado ao uso de fluoxetina ", disse o Dr. Osvaldo.

A nova análise do estudo AFFINITY foi publicada on-line em 02 de agosto no periódico JAMA Neurology.

Vários ensaios clínicos

Estima-se que uma em cada três pessoas apresente depressão até um ano após um AVC. Há algumas evidências de que o uso de antidepressivos reduza a depressão após um AVC, mas a quantidade, o tamanho e a qualidade dos estudos são limitados e difíceis de generalizar, observaram os pesquisadores.

O cloridrato de fluoxetina, um inibidor seletivo da recaptação da serotonina muito usado, demonstrou ser melhor que o placebo no tratamento da depressão em adultos. O medicamento também foi estudado, com algum sucesso, em pacientes com história de AVC.

O estudo randomizado FLAME, que incluiu 118 adultos com história recente de AVC, mostrou que, em comparação com o placebo, o uso de cloridrato de fluoxetina melhorou a recuperação motora e diminuiu a proporção de pessoas com depressão após três meses (7% versus 29%).

Dois outros estudos (FOCUS e EFFECTS) também trazem evidências para o uso da fluoxetina em pacientes com AVC; mas esses estudos têm vieses: "O problema desses estudos é que a estratégia utilizada para avaliar a depressão foi baseada em relatos clínicos", explicou o Dr. Osvaldo.

O pesquisador acrescentou que o estudo EFFECTS obteve dados sobre sintomas depressivos, mas não de todos os participantes; e, embora o estudo FLAME tenha usado a Escala de Avaliação de Depressão de Montgomery-Åsberg para avaliar a depressão, durou apenas 12 semanas e a definição de 'depressão' foi pouco clara.

O estudo duplo-cego AFFINITY randomizou pacientes adultos com história de AVC na Austrália, na Nova Zelândia e no Vietnã para receber 20 mg de hidróxido de fluoxetina ou placebo por seis meses. Ao início do estudo, os participantes obtiveram uma mediana de seis pontos na National Institute of Health Stroke Scale (NIHSS), indicando gravidade moderada de AVC.

Os pacientes vietnamitas foram incluídos em parte para garantir que os resultados pudessem ser generalizados para grupos étnicos e culturais de fora do Ocidente, disse o Dr. Osvaldo.

Os participantes obtiveram ≥ 1 ponto na escala de Rankin modificada, que vai de zero a seis pontos, com zero indicando ausência de sinais e sintomas e seis indicando morte. Os autores pontuaram que os pacientes apresentaram déficit neurológico leve a moderado.

Sem impacto no humor

O desfecho primário do estudo foi recuperação da funcionalidade após seis meses de tratamento. Conforme relatado no periódico Lancet Neurology em 2020, esses resultados foram negativos.

Um desfecho secundário esperado neste estudo foi presença de depressão clinicamente significativa. Os sintomas depressivos foram avaliados ao início do estudo e então na 4ª, 12ª e 26ª semana por meio do Patient Health Questionnaire – 9 (PHQ-9), um questionário preenchido pelo próprio paciente no qual cada item recebe até quatro pontos, indo de zero (ausência de sintomas) a três (presença de sintomas quase todos os dias).

Os pontos no PHQ-9 vão de zero (ausência de sintomas) a 27 (presença da maioria dos sintomas). A obtenção de mais de nove pontos indica sintomas de depressão clinicamente significativa entre pacientes com AVC.

A nova análise incluiu 1.221 participantes, com 607 no grupo de controle (placebo) (62,3% homens; média de idade de 64,3 anos) e 614 no grupo da fluoxetina (64,7% homens; média de idade de 63,4 anos).

As características de base dos pacientes incluídos nos dois grupos eram equivalentes. Cerca de 18,5% do grupo de controle e 18,9% do grupo da fluoxetina obtiveram mais de nove pontos no PHQ-9 (P = 0,84). A pontuação média no PHQ-9 foi de 4,9 no grupo de controle e 4,8 no grupo da fluoxetina (P = 0,80).

Os pesquisadores observaram pontuações mais baixas no PHQ-9 entre os indivíduos do Vietnã. Evidências provenientes de outros estudos sugerem que a prevalência de depressão é maior entre adultos australianos do que entre vietnamitas que moram no Vietnã ou na Austrália, disseram os autores.

Na quarta semana, 14,6% dos participantes no grupo de controle e 12,8% no grupo da fluoxetina obtiveram pelo menos nove pontos no PHQ-9. As porcentagens correspondentes foram 9,7% e 10,8% na 12ª semana e 8,2% e 7% na 26ª semana.

Não houve evidências de diferença entre os grupos. A parcela de participantes com pelo menos nove pontos no PHQ-9 diminuiu com o tempo (razão de chances ou odds ratio, OR, de 0,96; intervalo de confiança, IC, de 95% de 0,80 a 1,27; P < 0,001). O principal efeito do grupo de tratamento não foi significativo (OR de 1,01; IC 95% de 0,80 a 1,27; P = 0,94), e a interação entre o grupo de tratamento e o tempo também não foi significativa.

A prevalência cumulativa de depressão clinicamente significativa ao longo do acompanhamento foi de 21,1% do grupo de controle e 20,2% do grupo da fluoxetina (IC 95% de 3,7% a 5,5%).

Os achados não foram influenciados por fatores de confusão como sexo, país, tipo de AVC ou história de depressão – embora apenas aproximadamente 5% dos participantes tenham referido história de tratamento para depressão, segundo o Dr. Osvaldo.

A parcela de pacientes com sintomas clinicamente significativos de depressão em cada avaliação foi menor do que o previsto e, surpreendente, disse Dr. Osvaldo, "eu esperava ver um efeito da fluoxetina no humor".

Um subtipo de depressão?

Os resultados sugerem que depressão pós-AVC não é necessariamente o mesmo que transtorno depressivo maior, disse Dr. Osvaldo. “Os sinais e sintomas podem se sobrepor, mas têm uma base fisiopatológica diferente.”

Não está claro se estes resultados seriam similares com o uso de outros inibidores seletivos da recaptação da serotonina. Embora os estudos com a sertralina e outros antidepressivos tenham mostrado alguma evidência de eficácia, os resultados são inconsistentes.

“O problema é que esses estudos foram pequenos e relativamente breves”, disse Dr. Osvaldo. “Se a nossa interpretação sobre a depressão aguda pós-AVC estiver correta, não esperamos que esses antidepressivos sejam úteis também.”

A mesma incerteza se aplicaria a outras classes de antidepressivos, como tricíclicos, inibidores seletivos da recaptação da serotonina e norepinefrina e inibidores da monoamina oxidase, disse Dr. Osvaldo.

“O perfil de efeitos colaterais de alguns desses medicamentos levantaria preocupações sobre seu uso no tratamento de pacientes pós-AVC."

O estudo mostrou que havia uma fraca concordância entre a definição de depressão do PHQ-9 e o diagnóstico clínico de depressão, o que pode prejudicar a capacidade dos médicos de reconhecer a depressão em pacientes com AVC. Também pode ser que os pacientes com AVC relutem em revelar sintomas depressivos ou pode ser o resultado do uso de diferentes intervalos de tempo para avaliar a depressão ("desde a última avaliação" vs. "durante as últimas duas semanas" para o PHQ-9) ou ainda da baixa especificidade do PHQ-9 na identificação de verdadeiros casos de depressão em pacientes com AVC, acrescentaram os pesquisadores.

Os estudos FOCUS, EFFECTS e AFFINITY mostraram que o tratamento diário com fluoxetina por seis meses aumentou o risco de fratura óssea; no entanto, explicou o Dr. Osvaldo, o número necessário para causar dano (NND) relativo à ocorrência de uma fratura a mais foi alto. Isto sugere que o uso de fluoxetina para prevenir a depressão pós-AVC "deve ser considerado apenas se as evidências de benefício superarem o potencial risco de dano", observam os pesquisadores.

O Dr. Osvaldo disse estar confiante de que os novos resultados representam “a melhor evidência disponível para guiar a prática” e disse ainda que as medidas de suporte e a reabilitação podem ser a melhor estratégia para a depressão pós-AVC.

“Como os participantes do estudo foram recrutados de serviços especializados em AVC, é possível que os potenciais benefícios da fluoxetina tenham sido sobrepostos aos benefícios dessas medidas mais genéricas.”

Os autores reconheceram que, ao final do estudo, apenas 63,3% dos participantes estavam vivos e apresentavam boa adesão ao protocolo do estudo. Isso, eles disseram, pode ter diminuído o poder estatístico do estudo para excluir uma redução modesta, mas potencialmente importante, no risco de depressão.

Rastreamento vs. ferramenta de diagnóstico

No editorial que acompanha o estudo, os Drs. Michael D. Hill e Sean P. Dukelow, ambos do Departamento de Neurociências Clínicas e do Hotchkiss Brain Institute, University of Calgary, no Canadá, destacaram a grande parcela da amostra que apresentou evidências de algum grau de incapacidade e que foi inscrita no estudo até 15 dias após o início do AVC.

Os editorialistas também indicaram que os pesquisadores conseguiram avaliar tanto as pontuações absolutas quanto as mudanças nas pontuações ao longo do tempo. Eles destacaram a baixa concordância entre a obtenção de pelo menos nove pontos no PHQ-9 e o diagnóstico clínico de depressão, o que, observam, pode refletir a prática clínica, onde o PHQ-9 é usado como ferramenta de rastreamento em vez de diagnóstica.

“O PHQ-9 e o diagnóstico real de depressão podem ser situações diferentes”, disse Dr. Michael ao Medscape. "O estudo mostra que o tratamento com fluoxetina não mudou o PHQ-9, mas isso não significa necessariamente que não afetou a entidade clínica da depressão."

Dr. Michael enfatizou que os inibidores seletivos da recaptação da serotonina são úteis para a ansiedade crônica e "certamente têm um papel no tratamento da depressão". Ele acrescentou que esses medicamentos "também parecem ser úteis na labilidade emocional pós-AVC".

O fato de as pontuações do PHQ-9 terem sido mais baixas em participantes vietnamitas pode refletir "diferenças étnicas no relato dos sintomas depressivos", observaram os editorialistas.

Explorando novas opções para reabilitação pós-AVC

O Dr. Sean disse que há "muitas alternativas" de reabilitação pós-AVC em estudo, acrescentando que houve uma "explosão" nas pesquisas que examinam a estimulação cerebral não invasiva, incluindo a estimulação magnética transcraniana e a estimulação transcraniana por corrente contínua. Essas modalidades estão em pesquisa para tratar uma variedade de déficits relacionados ao AVC, incluindo afasia, perda motora, negligência espacial unilateral e dor pós-AVC, disse ele.

Os pesquisadores também estão analisando um antagonista do receptor de quimiocina tipo 5 (CCR5), maraviroc, em combinação com exercícios para melhorar a recuperação dos membros superiores e inferiores após um AVC. O maraviroc pode aumentar a capacidade de aprendizado durante a reabilitação, agindo em componentes moleculares exclusivos para um novo aprendizado.

"Se os resultados forem tão bons quanto os observados nos estudos pré-clínicos, o que certamente não é garantido, então o medicamento pode ser uma virada de jogo para a reabilitação do AVC", disse o Dr. Sean.

As equipes de pesquisa também estão examinando a ação do modafinil, um medicamento que modula o nível de mensageiros químicos no cérebro e exerce um efeito estimulante, na fadiga pós-AVC.

As tecnologias que permitem a reabilitação doméstica, como a realidade virtual e sensores em peças de vestuário para rastrear a atividade do paciente, vêm chamando atenção rapidamente, impulsionadas de certa forma pela pandemia de covid-19, disse Dr. Sean.

Sua equipe está iniciando um ensaio clínico que monitora a atividade cerebral por meio de espectroscopia infravermelho próxima enquanto um paciente faz sua reabilitação em sua casa.

O aperfeiçoamento de dispositivos robóticos para ajudar pacientes com AVC a andar ou auxiliar no tratamento dos membros superiores é outra linha de investigação. Tais dispositivos podem complementar o trabalho do fisioterapeuta e "ter o potencial de levar a maiores ganhos".

O estudo AFFINITY foi financiado pelo Australian National Health and Medical Research Council. O Dr. Osvaldo que recebe bolsas do National Health and Medical Research Council da Austrália e do National Health and Medical Research Council da Austrália. O Dr. Michael informou que recebe apoio financeiro da University of Calgary, NoNO Inc, Boehringer Ingelheim e Medtronic; ter a patente de um sistema automatizado de tomada de decisão para tratamento do AVC e ações da Pure Web Inc; e atuar como diretor da Canadian Federation of Neurological Sciences, do Canadian Stroke Consortium e da Circle NeuroVascular Inc; além de receber apoio financeiro da Alberta Innovates Health Solutions, dos Canadian Institutes of Health Research, da Heart and Stroke Foundation of Canada e do National Institutes of Neurological Disorders and Stroke. O Dr. Sean informou o recebimento de doações da Brain Canada e benefícios financeiros da Prometheus Medical, Sinntaxis, Ipsen e Allergan.

JAMA Neurology. Publicado on-line em 02 de agosto de 2021.

Por Pauline Anderson em Medscape

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