segunda-feira, 11 de março de 2013

Células “mães” se sacrificam por “filhas”


Na natureza há diversas espécies (além da humana) que realizam ações altruístas para garantir a sobrevivência de suas proles. Alguns exemplos extremos são os ursos polares fêmeas – que ganham até 200 quilos durante a gestação e passam por um jejum nos oito primeiros meses de vida de seus filhotes, de modo a prover um leite rico em gordura. Ou as “mamães” aranhas, da espécie Stegodyphus, que permitem que seus rebentos a matem para lhes servir de alimento.

Um estudo publicado na revista Science, realizado por um grupo internacional de pesquisadores, do qual participaram dois brasileiros, revelou que as menores porções de matéria viva – as células – também fazem sacrifícios para assegurar a continuidade de suas futuras gerações.

Os pesquisadores constataram que durante o processo de divisão celular (mitose) – pelo qual uma célula “mãe” se divide para dar origem a uma célula “filha” – a célula “materna” fornece muito mais mitocôndrias (estruturas internas essenciais para a sobrevivência de qualquer vida celular) para sua “cria” do que se esperaria pela razão entre os volumes delas – a célula filha é menor do que a célula mãe.

A descoberta sugere a hipótese de que, tal como na natureza, as células mães se sacrificariam para aumentar as chances de sobrevivência de suas filhas.
“Essa constatação é inédita e contraria a intuição de que as mitocôndrias são divididas de forma proporcional à densidade [volume] das células mães e das células filhas. Elas quebram essa regra”, disse Luciano da Fontoura Costa, professor do Departamento de Física e Informática do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP), campus de São Carlos, e um dos autores do estudo.

Costa é um dos pesquisadores principais de um Projeto Temático, coordenado pelo professor Roberto Marcondes Cesar Junior, do Departamento de Ciência da Computação do Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP, e realiza um projeto de pesquisa no âmbito do acordo da FAPESP com a Universidade de York, do Reino Unido.

O pesquisador foi orientador da iniciação científica, do doutorado e do pós-doutorado de Matheus Palhares Viana, o segundo pesquisador brasileiro participante do estudo.
Viana atualmente faz pós-doutorado na Universidade da Califórnia em Irvine no grupo da pesquisadora Susanne Rafelski – a primeira autora do trabalho, com o professor Wallace Marshall, da Universidade da Califórnia em São Francisco (UCSF), nos Estados Unidos. O estudo também contou com a participação de pesquisadores da Universidade de Pequim, na China.

Para estudar o processo de transferência de mitocôndrias entre as células, os pesquisadores usaram leveduras Saccharomyces cerevisiae – comumente utilizadas na produção de pão e de cerveja.

Por meio de sofisticadas técnicas de microscopia, a equipe internacional – liderada por Marshall e Rafelski – captou imagens das células das leveduras em um microscópio confocal (fluorescência) e promoveu um processo de fatiamento óptico das mitocôndrias presentes nelas, nas quais as estruturas são fragmentadas em diversos pedaços, como peças de um quebra-cabeça.

Por meio de métodos de computação específicos para o processamento de imagens – desenvolvidos inicialmente durante outro Projeto Temático, do qual Costa também participou –, o pesquisador e Viana juntaram as “fatias” das mitocôndrias, fizeram a reconstrução tridimensional (em 3D) das estruturas e a representaram na forma de redes (grafos). Dessa forma, conseguiram reproduzir em detalhes e medir o tamanho físico das redes mitocondriais – que tendem a diminuir continuamente ao longo das gerações sucessivas das células.

Os pesquisadores observaram que, no caso das células de levedura, no entanto, o tamanho da rede mitocondrial aumentava com o crescimento das células, e que essa relação de escala ocorria, principalmente, pela raiz.

“Se as mitocôndrias fossem divididas aleatoriamente e a densidade das células fosse mantida constante, esperava-se encontrar menos mitocôndrias nas células filhas do que nas células mães. O que se descobriu nesse trabalho é que a célula mãe dá mais mitocôndrias do que se esperava para a célula filha”, disse Costa.

De acordo com os pesquisadores, em vez de as leveduras “mães” fornecerem quantidade suficiente de mitocôndrias para seus descendentes, de forma a garantir sua própria sobrevivência, elas transferiam muito mais organelas do que o necessário, mesmo à custa de suas vidas. A maioria delas começou a morrer passadas dez gerações.

Já formas mutantes de leveduras, muito mais “avarentas” para fornecer suas mitocôndrias às futuras gerações, viveram por muito mais tempo.

Abordagem complementar

Segundo Costa, a descoberta desses mecanismos de divisão poderá ser estendida para outros organismos e tecidos. As células-tronco humanas e algumas células cancerosas, por exemplo, muitas vezes se dividem em duas células que se parecem e se comportam de forma muito diferente.

Em função disso, na opinião do pesquisador, estudos de biologia de sistemas como o que realizaram – que usam abordagens de ciências exatas, como métodos quantitativos de matemática, física e computação, e vão além da análise molecular – complementam a pesquisa em genética.

De acordo com Costa, as pesquisas sobre o genoma – hoje feitas em maior escala do que os estudos de biologia molecular – são insuficientes para entender um organismo como um todo porque diversos genes não são expressos, por exemplo.

“Os genes, em princípio, indicam como construir uma proteína, por exemplo. Mas o fato de se ter um gene não significa dizer que o organismo vai ter esta determinada proteína expressa”, disse.

“Existe todo um controle na maquinaria celular que determina se essa proteína será expressa ou não. E esse controle, inclusive, depende da geometria do embrião e se já foram formados certos tecidos e estruturas anatômicas que são usados como sinalização para expressão de genes e servem como andaimes para construir o resto de um organismo”, disse Costa.

O artigo Mitochondrial network size scalling in building yeast (doi:10.1126/science.1225720), de Luciano da Fontoura Costa e outros, pode ser lido em www.sciencemag.org/content/338/6108/822.full. 

Fonte: Agência FAPESP